Dirão muitos que esta morte em público “ajudou a consciencializar-nos” quanto ao cancro no pâncreas. Mentira. Se de alguma coisa sempre estivemos conscientes, foi da existência do cancro – e, quanto ao cancro pancretárico propriamente dito, ficámos todos na mesma, ignorantes ainda quanto a causas e sintomas (embora talvez mais cientes de que mata quase sempre). Dirão outros que, se António Feio viveu a sua doença em público, foi porque quis. Concedo: ele qui-lo. Mas não quis tudo o que aconteceu – e, aliás, mesmo querendo, várias coisas não deviam ter chegado sequer a ser-lhe propostas.
Ao longo de um ano e meio, António Feio foi entrevistado, condecorado e até ouvido para um trailer cinematográfico inédito. Mas também foi convidado para programas tontos, questionado sobre como se sentiu perante a morte de Patrick Swayze e usado para quase tudo o que foi dossier e caixinha sobre “famosos aflitos”. Aceitou quase sempre, suponho, porque estava desesperado, o que é o mais humano de tudo. Já nós, profissionais dos media, fomos oportunistas, mesmo obscenos – e devíamos todos ter vergonha de ter feito dele uma mascote.
CRÓNICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 31 de Julho de 2010