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31 Julho 2010

A morte de António Feio é lamentável. António Feio era um actor talentoso e uma personalidade ternurenta – e, numa altura em que a arrogância é cada vez mais um disfarce para a falta de talento, torna-se duplamente triste vê-lo partir. Mas tão lamentável como a sua morte é constatar a forma como a TV e a imprensa escrita, a rádio e até o cinema se aproveitaram da sua fragilidade neste ano e meio, persuadindo-a uma recta final de vida especialmente conspícua, que será útil à sua memória imediata, mas em nada favorecerá a sua memória futura.

Dirão muitos que esta morte em público “ajudou a consciencializar-nos” quanto ao cancro no pâncreas. Mentira. Se de alguma coisa sempre estivemos conscientes, foi da existência do cancro – e, quanto ao cancro pancretárico propriamente dito, ficámos todos na mesma, ignorantes ainda quanto a causas e sintomas (embora talvez mais cientes de que mata quase sempre). Dirão outros que, se António Feio viveu a sua doença em público, foi porque quis. Concedo: ele qui-lo. Mas não quis tudo o que aconteceu – e, aliás, mesmo querendo, várias coisas não deviam ter chegado sequer a ser-lhe propostas.

Ao longo de um ano e meio, António Feio foi entrevistado, condecorado e até ouvido para um trailer cinematográfico inédito. Mas também foi convidado para programas tontos, questionado sobre como se sentiu perante a morte de Patrick Swayze e usado para quase tudo o que foi dossier e caixinha sobre “famosos aflitos”. Aceitou quase sempre, suponho, porque estava desesperado, o que é o mais humano de tudo. Já nós, profissionais dos media, fomos oportunistas, mesmo obscenos – e devíamos todos ter vergonha de ter feito dele uma mascote.

CRÓNICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 31 de Julho de 2010

publicado por JN às 23:53

27 Julho 2010

Há uma coisa ainda mais provinciana do que seguir com excessivo deleite e comovido orgulho pátrio a carreira de Daniela Ruah nos Estados Unidos: é a obsessão de evitar o excessivo deleite e o comovido orgulho pátrio e, portanto, segui-la com amargo ressentimento. Não vale a pena mistificar: Daniela é uma mulher linda, com várias das condições habitualmente exigidas às jovens candidatas a divas – e, se ainda não demonstrou ser uma “actriz”, pelo menos no sentido clássico da palavra, foi porque toda a vida tem andado, para mal dos seus pecados, em projectos artisticamente paupérrimos.

Vale a pena acompanhá-la e, de alguma forma, viver com ela a euforia de cada uma das etapas queimadas na sua escalada em direcção ao estrelato, incluindo esta recente passagem pelo marginal-mas-não-tanto Late Late Show (CBS), apresentado por Craig Ferguson. Por outro lado, é a própria Daniela Ruah quem sublinha que é “filha” de pais portugueses e “cresceu” em Portugal, transformando aquilo que agora tão obsidiantemente nos enche de orgulho numa referência sobretudo exótica da sua biografia, a que de resto pode recorrer sempre que (e apenas quando) lhe der jeito. E só há uma coisa mais provinciana ainda do que seguir com comovido orgulho pátrio ou amargo ressentimento o seu percurso. É querer à força que ela seja uma coisa que não quer ser: uma portuguesa de Portugal, ainda que circunstancialmente nascida no Massachusetts.

Não é só em França que existe o “estigma da porteira”: também nos Estados Unidos, terra de oportunidades, somos vistos como um povo trabalhador, mas tonto. É isso que nos reduz ao exotismo. E o mais provável é que, de facto, esse exotismo não seja lisonjeiro.

CRÓNICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 27 de Julho de 2010

publicado por JN às 22:16

25 Julho 2010

O mais curioso, neste caso do suposto alcoolismo de José Carlos Pereira, não é a notícia em si. Nem sequer o afastamento prematuro do actor de Mar de Paixão (TVI). Nem mesmo o facto de José Carlos Pereira não só negar que tenha problemas com o álcool, mas também que a sua personagem na dita telenovela vá morrer mais cedo do que o previsto. É o tom em que José Carlos Pereira faz o desmentido.

Um político declamaria um discurso sisudo, mesmo ofendido – e, concluída a conferência de imprensa, ainda poria os assessores a ligar para os directores dos jornais, tentando capitalizar a falha. Um futebolista mandaria os jornalistas todos para casa da mãezinha deles, questionando inclusive o carácter da senhora – e depois lá andariam repórteres e editores a tentar resolver o problema, que isto não pode ser assim, que dependemos todos uns dos outros, que o que é preciso é paz. José Carlos Pereira, não. Confrontado numa festa, tentou fugir à questão, depois negou timidamente ter problemas com o álcool – e, finalmente, apelou ao coração dos repórteres: “Pensem lá um bocadinho: se fosse convosco, não ficavam incomodados?”

Talvez se pudesse ver aqui paternalismo. José Carlos Pereira podia achar que os jornalistas de TV são todos tontos e, portanto, precisam mesmo daquele pedido para que parem um instante a considerar o imbróglio que estão a causar-lhe. Não é o caso. José Carlos Pereira, um dos principais actores de telenovelas da sua geração, tem medo dos jornalistas. Dos directores, dos editores, dos próprios repórteres. O que talvez diga alguma coisa sobre o nosso jornalismo de TV. Mas diz de certeza sobre a nossa indústria de televisão e a sua imensa fragilidade.

CRÓNICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 25 de Julho de 2010

publicado por JN às 10:54

03 Julho 2010

mesmo tempo – e é ainda mais alguma coisa. Durante duas décadas e meia, Larry King entrevistou todo o tipo de gente. Fê-lo diariamente, provando que, pelo menos num lugar deste mundo, resistia uma estação com meios de produção suficientes para suportar a assertividade de um programa de informação diário. E fê-lo com enorme sucesso.

A razão primeira para esse sucesso é a mais simples: todos os assuntos eram, para Larry King, passíveis de interesse. O que importava era a abordagem que ele lhes fazia, quase sempre inteligente, quase sempre capaz de fazer reportar a conversa às tendências de que ela era mensageira. Larry King não é um intelectual, mas era capaz de extrair o melhor dos intelectuais. Não é um especialista da geopolítica, mas era capaz de decifrar, nas entrelinhas de uma entrevista com um homem da estratégia, o que catalisava a marcha deste mundo. Não é, seguramente, um homem do jet set, da subcultura light, da televisão fácil, mas nem por isso deixou de entrevistar estrelinhas de todo o tipo – e, mesmo nesses casos, as suas entrevistas tiveram interesse.

E isso não denuncia apenas uma personalidade interessada e interessante, cheia de gosto pela vida: atesta também que o grande jornalismo – o verdadeiro jornalismo – durou pelo menos até aos nossos dias. Não tenho a certeza de que haja muito quem tenha aprendido com Larry. Em Portugal, nos próprios EUA e no mundo em geral.

CRÍTICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 3 de Junho de 2010

publicado por JN às 19:50

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joel neto

Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974. Publicou “O Terceiro Servo” (romance, 2000), "O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002), “Al-Jazeera, Meu Amor” (crónicas, 2003) e “José Mourinho, O Vencedor” (biografia, 2004). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista, tem trabalhado... (saber mais)
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