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31 Dezembro 2009

A televisão portuguesa está em modo “pausa”, à espera de melhores dias. Basta olhar para aquilo que nos propõem os canais generalistas para o Réveillon: Dança Comigo no Gelo Especial na RTP1, Ídolos Especial na SIC, Uma Canção Para Ti Especial na TVI – exactamente o mesmo de sempre, como se nem sequer fosse dia de festa (apenas um dia em que há mais gente em frente à TV).

Para o telespectador, é deprimente. Dias de festa não são apenas dias de festa: são também balizas para a passagem do tempo, marcos para delimitar os acontecimentos de uma vida e de uma sociedade. Acontece que não há dinheiro. E, aparentemente, no século XXI é assim: a falta de dinheiro não inspira a criatividade, mas a repetição de fórmulas.
Nem sequer é coisa só nossa, muito menos só da televisão. No próprio cinema, os projectos ousados estão praticamente votados ao esquecimento, com as grandes produtoras (e as grandes distribuidoras) a promoverem quase em exclusivo os filmes de bilheteira garantida, esquecendo, por exemplo, os pré-candidatos aos Óscares.
Acontece que a TV generalista vive os seus últimos dias. Mudou tudo nos últimos três anos – e, dentro de outros três, já poucos estarão na disposição de ver “isto” (ou sequer “assim”). Pois o meu receio é de que os canais abertos passem demasiado tempo em modo “pausa”, negligenciando a necessidade de reconverter-se – e reduzindo definitivamente o seu público, muito em breve, aos reformados, às donas de casa e aos doentes nos hospitais.

CRÓNICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 31 de Dezembro de 2009

publicado por JN às 23:31

29 Dezembro 2009

Assiste-se a O Destino do Senhor Sousa (RTP2, sábado à noite), de resto apenas mais um filme português feito veículo para o overacting de Luís Miguel Cintra, e torna-se a constatar como Rita Blanco é uma das nossas melhores actrizes de audiovisual, se não mesmo a melhor. A concorrência, já se sabe, é limitadíssima. Mas há algo em Rita (como o há, entre os homens, em Nicolau Breyner) que simplesmente ilumina o ecrã.

E eu, correndo o risco de voltar a ser acusado de ignorância – é sempre acusado de ignorância quem denuncie os actores como a classe mais persistentemente medíocre do nosso panorama artístico, o que de alguma maneira eu torno a fazer aqui –, não consigo dissociar esse brilho da própria atitude diária de Rita Blanco enquanto persona televisiva. Encontramo-la numa entrevista, no júri de um concurso ou numa participação especial, e ela é sempre “uma de nós”: uma mulher do mundo, com as idiossincrasias e as obsessões e mesmo as ignorâncias que todos os dias nos rodeiam.
Resultado: uma delicada combinação entre a absoluta naturalidade com que qualquer papel lhe assenta (no teatro, no cinema ou na TV, telenovelas incluídas) e o magnetismo que qualquer das suas personagens exerce sobre nós (e trate-se de drama ou de comédia, de entretenimento ou de manifestos pejados de compromisso sociológico). Tudo isso, de resto, está em O Destino do Senhor Sousa – e é filme de apenas alguns minutos, quase todos centrados em Luís Miguel Cintra.

CRÍTICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 29 de Dezembro de 2009

publicado por JN às 11:56

27 Dezembro 2009

Há talvez uma década, quando os jornais e as revistas perceberam que os “famosos” podiam ser um catalisador do interesse dos leitores, eles tinham uma utilidade. Fazia-se uma daquelas reportagens sobre “pessoas que” (pessoas que criaram doze filhos, pessoas que escalaram o Evereste, pessoas que têm um olho de cada cor) e bastava incluir o exemplo de um famoso “que também” para conseguir chamar a atenção para as dificuldades de uma família grande, os desafios de uma escalada épica ou o potencial de sedução de um par de olhos fruta-cores.

Hoje, os jornais vão abandonando o truque – e não foram nem as histórias, nem os leitores que mudaram: foram os “famosos”. Porque, hoje em dia, toda a gente é famosa: figurantes armados em “actores”, queques ociosas que a si mesmo chamam “relações públicas”, cabides da La Redoute a quem alguém convenceu que são “manequins” – milhares de inúteis que nem têm histórias para contar nem são sequer reconhecíveis para a generalidade do público, perdido ele próprio no meio das supostas celebridades que vão saltando de dentro dos caixotes de lixo, escorrendo dos bebedouros ou espreitando por detrás das bocas de incêndio.
Toda a gente o sabe: já não há famosos – e, se os há, não se misturam. “Toda a gente”, não: os programadores da TV portuguesa não o sabem. Basta conferir o número de programas que, ao longo desta quadra, têm aparecido com o subtítulo Especial Famosos – e depois ver de que “famosos” se trata, afinal. Um grupelho deprimente, no fundo.

CRÓNICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 27 de Dezembro de 2009

publicado por JN às 23:53

24 Dezembro 2009

O elemento mais importante de Ídolos é o júri, como muito bem aqui dizia ontem o Nuno Azinheira – e, antes dos apresentadores, ainda vêm os concorrentes. É essa a lógica do formato – e é ainda mais claramente essa a lógica da versão portuguesa. Para João Manzarra e Cláudia Vieira, na verdade, não resta senão o mesmo papel que, no boxe, têm aquelas raparigas esculturais que se passeiam pelo ringue, imediatamente antes de a campainha voltar a tocar, erguendo uma placa com o número do assalto seguinte.

Nesse sentido, claro, Cláudia leva vantagem sobre o partenaire. Para ler pivots a correr, ter uma cara bonita basta – e Cláudia Vieira é uma das mais bonitas figuras televisivas da sua geração (embora não especialmente telegénica, aspecto em que perde, por exemplo, para Diana Chaves). Daí que se torne constrangedor assistir a tentativas de legitimação de carisma como a que protagonizou um destes dias, quando, explorando o facto de estar grávida, pegou num DVD com uma ecografia ao seu próprio útero e o presenteou ao colega.
Também Catarina Furtado se despedia dos espectadores, em Dança Comigo, apontando para a barriga e dizendo: “Nós voltamos para a semana.” Também Alexandra Lencastre usou a barriga grávida para fazer publicidade, nos anos 90. Mas, se ambas foram pindéricas ao fazê-lo, ao menos fizeram-no por fama ou por fortuna – e, como a lógica de Ídolos não a deixará nunca ter mais protagonismo do que já tem, Cláudia Vieira está a fazê-lo absolutamente por nada.

CRÓNICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 24 de Dezembro de 2009

publicado por JN às 23:56

22 Dezembro 2009

Diz José Carlos Castro, citado pelo Correio da Manhã, que a razão por detrás do facto de se falar tão mal na TV portuguesa (e de se escrever igualmente mal nos seus rodapés) é a falta de tempo para a produção condigna da informação. A mim, o que me surpreende é saber que foram os espectadores quem, através de queixas ao provedor da RTP (mas com referências a todos os canais), denunciou o problema.

Na verdade, não se fala mais mal na televisão do que se fala pelos transportes públicos, pelas repartições e até pelas salas de conferências deste país. Gozamos com os jogadores de futebol, mas na verdade somos iguais: falamos e escrevemos todos mal – e falamos e escrevemos todos mal porque a expressão escorreita deixou de ser um imperativo cultivado nas famílias, nas escolas e, inevitavelmente, na relação de uma pessoa consigo própria.
Mas pode criticar-se a inabilidade dos nossos jornalistas de TV no manuseamento da oralidade. Vivemos o tempo da linguagem oral: um tempo em que a própria literatura tenta corresponder ao apelo da expressão simples e musical do dia a dia. Por outro lado, a maior parte dos jornalistas não sabe a diferença entre a oralidade e a vulgaridade – e muito menos a forma como cada uma delas pode ser manipulada para reproduzir uma atmosfera ou induzir o próprio pensamento.
Problema: na TV é preciso improvisar, queimar tempo, encher chouriço. É trapézio sem rede – e os pivôs, como nós, não polvilharam as mãos com pó de talco.

CRÓNICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 22 de Dezembro de 2009

publicado por JN às 18:48

21 Dezembro 2009

O melhor programa de TV a que temos acesso em Portugal, incluindo antena, cabo, IPTV e satélite? É difícil ser definitivo, mas Top Gear (BBC Prime e Discovery Channel) tem de ser considerado entre os candidatos. Um programa sobre carros, sim – e sabe Deus o que os carros representam neste tempo de vaidades, egoísmos e acefalias. Mas também um prodígio de inventiva, de humor e de competência técnica que faz mais pela absolvição do automóvel do que dois terços das corridas existentes.

A chancela é da BBC, naturalmente. Ao longo de 40 minutos (embora a duração não seja fixa), três jornalistas reúnem-se em estúdio com umas quantas dezenas de espectadores (embora o formato também não) para uma conversa sobre carros. Entretanto, e um pouco à semelhança, por exemplo, de Diz Que É Uma Espécie de Magazine, vão mandando passar os vídeos dos testes que fazem aos mais variados automóveis. E o que dali resulta é brilhante.
Acutilantes, irónicos e cultos (para além de excelentes condutores), Jeremy Clarkson, Richard Hammond e James May pegam nos automóveis e fazem corridas com comboios, fogem de aviões tresloucados ou escondem-se de dinossauros em fúria. A produção, como se percebe, é de luxo. E, ao redor do planeta, os seguidores são já mais de 350 milhões, acumulados ao longo de 32 anos de exibição (embora sobretudo depois do relançamento “em grande”, em 2002).
Facto: nunca, em toda a já longa história da TV portuguesa, produzimos um programa desta qualidade.

CRÍTICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 20 de Dezembro de 2009

publicado por JN às 08:58

18 Dezembro 2009

Na RTPN nem sequer houve noticiário: a reposição de Trio D’Ataque prosseguiu tranquila. Na TVI24 houve noticiário, mas parecia que não tinha acontecido nada: a abertura do jornal foi com o “caso Face Oculta”. Na SIC Notícias houve noticiário e houve abertura dedicada ao tema, mas uma coisa tão críptica que mais valia nem fazer nada. Às duas da manhã de ontem, 23 minutos depois de o continente português ser afectado pelo seu maior sismo em 40 anos, ainda as nossas televisões noticiosas não sabiam de nada – ou, pelo menos, não tinham nada para dizer.

Talvez haja algo de cruel em registá-lo. Mas foi esse o regime que a televisão impôs: o regime do directo (ou, em não sendo possível directo, do em-cima-da-hora). E o que esta história do sismo deixou perceber foi que, durante a madrugada, as redacções estão efectivamente a dormir, depauperadas de meios e privadas de capacidade de reacção, com um jornalista e dois operadores de câmara sonolentos e ansiosos por turno mais benigno. O que nos diz menos sobre esses jornalistas do que sobre os seus patrões, claro – mas nos diz bastante sobre os respectivos canais.
O espectador está na disposição de perdoar a falta de informação sobre uma coisa que ocorreu no outro lado do mundo, mas não sobre uma coisa de que ele próprio foi protagonista (como um sismo que ele próprio sentiu). Tem razões para isso: há quinze anos que vem alimentando fóruns e vox pop – em algum momento será a vez de as televisões fazerem o seu trabalho.

CRÓNICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 18 de Dezembro de 2009

publicado por JN às 18:36

16 Dezembro 2009

Consultamos os alinhamentos de televisão generalista para as próximas duas semanas, sentimos um arrepio na espinha e vamos rapidamente acender uma velinha aos deuses do cabo e da IPTV. A programação da nossa televisão para este Natal é tão má como sempre, tirando que é pior ainda.

Se a TV efectivamente é o espelho de uma sociedade, um extra-terrestre que aterrasse num dos últimos Natais em Portugal não só ficava com a certeza absoluta que nos afundáramos todos em depressão, como ainda registava com espanto o facto de entendermos o circo, provavelmente o espectáculo mais deprimente do mundo, como principal aposta de evasão. Mas, como tantas vezes acontece na nossa TV, quando nós achamos que as coisas já não podem piorar, então é que elas ficam definitivamente más.
Problema candente: o filão da “beneficência”, que há muitos anos a RTP explorava com o Natal dos Hospitais, mas de forma um tanto ingénua (e, aliás, relativamente benigna). Ainda no outro dia a Gala de Natal da TVI o explorou abundante, deslavada e até cinicamente – e, quando se confere a programação dos diferentes canais para esta quadra, o mínimo que se pode temer é que toda a gente se prepare para fazer exactamente a mesma coisa (e, de resto, várias vezes) até ao fim do ano.
Independentemente do polimento de cada proposta, há sempre algo de obsceno nisto. Assim vai o nosso entendimento do mainstream. Mal se pode esperar pelo Dia de Reis.

CRÓNICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 16 de Dezembro de 2009

publicado por JN às 11:02

14 Dezembro 2009

Tiger Woods é o melhor jogador da história do golfe, um jogo com mais de 250 anos de “era moderna” (e, aliás, amplamente reconhecido como uma das modalidades desportivas mais exigentes, tanto o ponto de vista técnico como psicológico). E, no entanto, foi preciso esperar quase 13 anos, contando a partir do arranque da carreira profissional de Tiger, para que o seu rosto se tornasse presença regular na televisão portuguesa.

Há algo de lamentável nisto. Todos os anos ocorrem em Portugal três torneios de golfe de grande nível internacional – e raramente os nossos canais (à excepção da SporTV, abençoada seja) lhes dão um mínimo de cobertura. Já as inesperadas infidelidades de Tiger, que por esta altura levam o puritanismo americano a um delírio nunca antes atingido (a não ser com Bill Clinton), são notícia nos mais variados canais, tanto no cabo como em sinal aberto.
Pois, agora, o mínimo que se pode esperar é que o burburinho em torno da vida privada de Tiger contribua para a divulgação do golfe entre os portugueses. Aparentemente, é assim que as coisas funcionam com a televisão. Ainda esta semana li, nos jornais, uma entrevista com Adelaide de Sousa – e aquilo de que quase toda a entrevista falava, com aparentes benefícios para a divulgação do canal, era de como a apresentadora mudava as fraldas ao seu novo bebé (e até de como, imagine-se, os seus cães haviam reagido à presença da criança).
Não vale a pena tentar percebê-lo, portanto. Aproveitemo-lo apenas: Tiger com eles.

CRÓNICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 14 de Dezembro de 2009

publicado por JN às 10:55

11 Dezembro 2009

Chama-lhe “um público apetecível”, e as razões porque lho chamam são várias. Os adolescentes, segmento ao qual se dedicam estes novos Panda Biggs (estreou dia 1, na Zon) e SIC K (estreia dia 18, no Meo), são apetecíveis porque influenciam a forma como o orçamento familiar é gerido, manietando as escolhas de supermercado e exigindo uma miríade de gadgets caros – e isso é tão importante para os anunciantes como para um canal que viva deles. Mas são apetecíveis também porque representam um público caprichoso e imprevisível, obrigando a uma gestão ágil da programação – e isso é tão estimulante para um programador como para quem gosta de televisão e do que ela representa enquanto espelho de uma sociedade.

Antigamente, e quando nos cruzávamos com uma família militantemente sem TV em casa, olhávamos para os adolescentes e suspirávamos: “Coitados. Do que conversarão com os amigos, na escola?” Hoje, com os novos canais de comunicação, esse problema já não se põe. As opções são tantas que não há dois miúdos a ver a mesma coisa – e, no entanto, as relações sociais deles aí continuam, pujantes e obsessivas como sempre. Explicação: hoje já não é a televisão a rebocá-los, são eles a rebocá-la a ela. Portanto, também já não é a televisão a marcar as tendências deles, mas eles a marcar as tendências dela – e aos programadores mais não resta do que tentarem orientar-se no meio desse caos. Vai ser interessante assistir à sua odisseia semanal. Que comecem as hostilidades.

CRÓNICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 12 de Dezembro de 2009

publicado por JN às 09:35

10 Dezembro 2009

Não vale a pena escamoteá-lo: avaliado no seu conjunto, o TVI24 é um canal monocromático e monocórdico, que nasceu e já vinha velho – e a que nenhum dos esforços empreendidos entretanto conseguiu dar mais cor ou ritmo. Tem programas originais e vagamente interessantes, sim. Mas enfermou, logo de início, de uma ordem para que se distinguisse do alarido e do “justiceirismo” da casa-mãe. Problema: na casa-mãe há muito tempo que não se fazia outra coisa – e, como o rebento foi fundado no know how dela, acabou a meio caminho entre a espectacularidade e a circunspecção, entre a ousadia e o cuidado, entre este mundo e o outro (e, portanto, em mundo nenhum). Acabou aí e aí permanece.

Mas um consumidor de TV do século XXI é também um coleccionador de canais. Independentemente do interesse que cada estação efectivamente lhe desperte, fazer zapping fá-lo sentir-se confortável, seguro e até bem-sucedido. Daí que a notícia do arranque, em 2010, das emissões do TVI24 no Meo e na Cabovisão seja uma das melhores dos últimos meses. E o mínimo que se pode pedir, por esta altura, é que o anúncio signifique o fim desta nova e frustrante tendência para o malabarismo com a exclusividade de contratos, Canal Benfica à cabeça. Os números são claros: o que essas exclusividades podiam fazer pelos distribuidores já está feito. Chegou a altura de compensar os telespectadores – e, aliás, de compensar os próprios canais, que no meio destes braços-de-ferro perdem público, anunciantes e fulgor.

CRÓNICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 10 de Dezembro de 2009

publicado por JN às 18:21

08 Dezembro 2009

Talvez Paquete de Oliveira tenha razão e “o espectador da RTP” não aprecie “mesmo nada” o uso de estrangeirismos na televisão. Talvez a sua conclusão seja correcta e o facto de “o espectador da RTP” não apreciar “mesmo nada” o uso de estrangeirismos na televisão signifique que “quer ver respeitada a língua portuguesa”. Mas não é evitando os estrangeirismos que se protege uma língua. “O espectador da RTP”, como Paquete de Oliveira o identificou numa entrevista ao Correio da Manhã, talvez não o saiba. E o seu provedor, como prova a insistência no tema, não o sabe de certeza.

As línguas são objectos dinâmicos, para cujo desenvolvimento o estrangeirismo é essencial. Mesmo o barbarismo, a categoria mais radical de estrangeirismo, é decisivo – e milhares são as palavras, no actual português oficial (se é que o há), que começaram por ser uma coisa ou outra (ou mesmo as duas ao mesmo tempo). Ser capaz de colocar-se em confronto com palavras estrangeiras, absorvê-las e fazê-las vergarem-se às suas próprias regras – eis o verdadeiro sinal da força de uma língua. Andar desesperadamente à procura de um termo para definir uma ideia que não consegue sequer conceber – eis o supremo sinal da sua fragilidade.
São posições como a de Paquete de Oliveira que deixam uma língua refém de um desastroso acordo ortográfico como aquele que pretendem impor-nos. Felizmente, continuará a existir literatura – e, com ela, uma língua em permanente evolução.

CRÓNICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 8 de Dezembro de 2009

publicado por JN às 14:33

06 Dezembro 2009

O Que Se Passou Foi Isto, que a RTP1 estreou na noite da última quarta-feira, não funciona. A realização resulta (Jorge Paixão da Costa filma bem), mas a direcção de actores é medíocre, inviabilizando qualquer veleidade quanto à reedição do ritmo clássico de uma sitcom. Algumas das imitações de Luís Franco-Bastos são excelentes (todas menos a de Paulo Bento, que Ricardo Araújo Pereira faz melhor), mas a caracterização é banal. E, sobretudo, os textos são fracos. Muito fracos mesmo.

A Produções Fictícias foi (e é), provavelmente, o fenómeno mais relevante do humor nacional desde o surgimento da dupla António Silva/Vasco Santana. Dela saiu o Contra-Informação, o Herman Enciclopédia, os Gato Fedorento e tantos outros programas e projectos que, além de porem o país a rir, o puseram a pensar, a cultivar manias, a mimetizar personagens, a repetir aforismos – no fundo, a ganhar ironia e assertividade. A avaliar pelo primeiro O Que Se Passou Foi Isto, este será um dos menos fulgurantes dos seus projectos de grande exposição – e, a não ser que sofra alterações significativas, dificilmente durará mais do que uma série.
O formato tem potencial. A auto-ironia do genérico funciona. Carla Salgueiro continua bonita. Manuel Marques como que já faz parte da família. E, no entanto, é claro que o projecto julgava poder sobreviver sobretudo à base de Franco-Bastos. Ora, Franco-Bastos tem graça na imitação, mas pouco carisma quando descaracterizado. E, manifestamente, não chega.

CRÍTICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 6 de Dezembro de 2009

publicado por JN às 11:22

03 Dezembro 2009

Portugal de Olhos Em Bico, a nova aposta da TVI para os fins de tarde de domingo, é tão mau, tão absurdo e tão ridículo que chega a ter graça. José Pedro Vasconcelos fala mal português, mas tem piada e sentido de timing humorístico. Yoshi e Mr. Fu, os japoneses que co-apresentam o programa, são provavelmente os dois maiores cromos da história recente da nossa televisão. E os jogos são tão desconchavados e paradoxais que quase parecem mentira.

No Japão, concursos assim são sinal do declínio de uma sociedade que perdeu a capacidade de divertir-se e precisa urgentemente de libertar a energia contida que poderá levá-la ao suicídio (ou à implosão). Aqui, pode perfeitamente ser uma espécie de toque a reunir contra o último degrau de um declínio semelhante, com epicentro precisamente na televisão. Bem vistas as coisas, este podia ser o mais importante programa da TV nacional desde Big Brother.
O problema é que se dinamita a si próprio quando, lá pelo meio, se permite um segmento de “perguntas de cultura geral”. Por alguma razão disparatada, todos os concurso da televisão portuguesa têm de ter um. Só que uma série de pessoas dizendo que não fazem “a mínima ideia” de qual é a capital do Japão ou que nove vezes nove “são quarenta e nove” não é a televisão a rir-se de si própria: é a televisão a rir-se do país. E isso já nós tínhamos antes, de resto sem grandes resultados práticos.

CRÍTICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 3 de Dezembro de 2009

publicado por JN às 19:27

02 Dezembro 2009

A morte de Jorge Lopes é, provavelmente, a maior perda do ano para a televisão nacional. Com Luís Lopes, do Eurosport (e de quem era apenas amigo e colega, apesar do sobrenome em comum), Jorge Lopes formava o melhor par de comentadores de atletismo do panorama nacional, talvez mesmo o melhor par de comentadores desportivos considerando todas as modalidades e todos os media portugueses.

Especializado em atletismo após actividade noutras áreas, Jorge Lopes era ao mesmo tempo enciclopédico e torrencial. Dele podia sempre esperar-se, numa fracção de segundo (porque de cabeça), a referência a um recorde antigo, a reprodução do tempo exacto de Edwin Moses nos 400 m barreiras dos Jogos Olímpicos Montreal’76 ou a identificação de qual foi, dos quatro atletas da URSS, o que maiores responsabilidade teve na derrota frente aos EUA na estafeta 4x100 no Campeonato do Mundial Roma’87.
Os seus comentários centravam-se nos tempos, não nas velocidades medidas em km/h. Centravam-se nas distâncias, não na técnica de contrair e dilatar um adutor. Centravam-se nas alturas, não na influência que o vento tivera nelas. Os seus comentários denunciavam paixão, mais do que análise – e, por isso mesmo, encantavam-nos durante horas, sem nunca nos aborrecerem.
O seu legado aí fica, à disposição dos comentadores e dos jornalistas desportivos (e não só). Continuará a fazê-lo brilhar alto Luís Lopes, com quem partilhava a escola. Mas os Lopes já não são dois – e isso, sim, é uma tragédia.

CRÓNICA DE TV ("Crónica TV"). Diário de Notícias, 2 de Dezembro de 2009

publicado por JN às 17:53

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joel neto

Joel Neto nasceu em Angra do Heroísmo, em 1974. Publicou “O Terceiro Servo” (romance, 2000), "O Citroën Que Escrevia Novelas Mexicanas” (contos, 2002), “Al-Jazeera, Meu Amor” (crónicas, 2003) e “José Mourinho, O Vencedor” (biografia, 2004). Está traduzido em Inglaterra e na Polónia, editado no Brasil e representado em antologias em Espanha, Itália e Brasil, para além de Portugal. Jornalista, tem trabalhado... (saber mais)
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